No último sábado de setembro, desci a Serra para participar da assembleia geral dos associados do meu time. Tínhamos a tarefa indesejável de confirmar ou não a destituição do presidente eleito em dezembro. O processo foi autorizado por margem limítrofe no Conselho Deliberativo do clube e resultou de iniciativa de gente ligada ao que há de mais retrógrado e provinciano na política interna do Peixe. Votei contra, é claro.
Entendo que José Carlos Peres, o presidente encrencado, não possui qualificação para comandar o Santos e, muito menos, para conduzir o maior time da história do futebol mundial. Não fui um de seus eleitores e não concordo com seu jeito de administrar o clube. Pelo contrário.
Em nove meses, ele abusou do direito de fazer besteiras, por vezes afrontando de fato os Estatutos Sociais, que são a constituição do clube. Peres também costuma cercar-se de más companhias, talvez por entender que pode manobrar os medíocres com mais facilidade. Foi possivelmente o que imaginou ao unir-se a Orlando Rollo, envolvido nas piores confusões que denegriram o Peixe nos últimos anos e o vice que o trairia menos de dois meses depois da eleição.
Apesar de tudo, ou por falta de tempo, Peres não fez tanto mal ao Peixe quanto seu antecessor, Modesto Roma, que teve as contas reprovadas em dois de seus três anos de mandato. Comenta-se em Santos que, se houvesse vontade política do atual Conselho (presidido por Marcelo Teixeira, patrono das candidaturas Roma), o ex-presidente já teria sido afastado do clube, no mínimo.
De forma que os associados viram-se na condição de ter de escolher entre o feio e o pavoroso. A maioria dos santistas preferiu não apoiar o golpe articulado pela turma do “o Santos é de Santos” e, apesar dos pesares, ficar com o presidente escolhido há poucos meses. Nessa situação, e em “homenagem” às pessoas que têm dirigido o Peixe desde 2015, subi a Serra de volta a São Paulo lembrando uma história que escrevi em dezembro de 2002, logo depois das inesquecíveis pedaladas.
Presente de Natal
O ex-presidente corintiano Vicente Matheus caminha nervoso na ante sala do Criador. Vai de um lado a outro, movendo as perninhas miúdas, e resmunga alto, sem se preocupar se é ou não ouvido. De qualquer forma, pensa, Ele lê até pensamento. Sabe que blasfema, mas não consegue se segurar.
– Você é injusto! Não trata os Seus filhos com igualdade. Você tem todo o direito de torcer pro time que quiser. Mas não pode ser assim tão parcial.
Deus, que naqueles dias antes do Natal de 2002 passava as últimas instruções para o Papai Noel chefe, acha graça daquela irritação e pede à secretária:
– Madalena! Mande o Vicente entrar.
O homenzinho muda de humor, diante da audiência não agendada, e até sorri, quando se apresenta ao Todo-Poderoso. Mas logo volta ao ar triste e choroso.
– Desembucha, infeliz, que agora Eu não tenho muito tempo!
Matheus odeia ser chamado de infeliz, mas resiste ao golpe.
– Sabe o que é, Senhor? Nós, corintianos, não aguentamos mais passar humilhações diante daquele time. E tudo por Sua causa, que, não contente em colocar na Vila o Rei do Futebol, agora dá a eles esses dois capetinhas, Robinho e Diego. Você viu o que eles fizeram com a gente na decisão do campeonato brasileiro?
– É claro que Eu vi, sofredor. Eu estava lá! E Me diverti muito com as pedaladas do Robinho. Aliás, você chama os garotos de capetas, mas aquilo não é obra do cara lá de baixo. O rabudo torce pro teu time. Foi coisa de Deus, quero dizer, Minha.
– Pois é justamente com isso que eu não me conformo, Divino. Por que o Senhor, que tudo pode, favorece sempre o Santos? Não podia ter mandado pelo menos um dos dois para o Parque São Jorge?
– Não seja ridículo, Meu bom Vicente! Você acha mesmo que Eu seria capaz de romper, sem falsa modéstia, a maravilhosa harmonia da criação, só para não ter você aqui, chorando na Minha frente? Entenda, de uma vez por todas, que a vida é assim. Tem céu e inferno, alegria e tristeza, vitórias e derrotas. Tem Santos, desculpe, santos e demônios. Tem os que se dão bem e os que se dão mal. Os vencedores e os perdedores.
– Quer dizer, então, que nós estamos condenados a perder sempre, meu Pai?
As lágrimas já escorriam pelas bochechas avermelhadas do marido de Dona Marlene, e Deus, que é Bondade, Misericórdia e Compaixão, resolveu ser também Consolo e Esperança para aquele pobre diabo.
– Acalme-se, meu torturado filho! Enxugue essas lágrimas e ouça o que Eu tenho a lhe dizer. O Santos é o meu time, certo? Mas isso não significa que ele será sempre o vencedor. O que Deus põe, digo, o que Eu ponho, o homem dispõe. Porque é arrogante, orgulhoso e metido. Aquele pessoal da Baixada estava se achando dono da cocada preta. Por isso, foi punido.
– Mas como, Senhor? Com esse time maravilhoso de garotos, que vai durar pelo menos mais dez anos?
– Não, Vicente, punido com os dirigentes que Eu coloco lá na Vila Belmiro. Espere e verá, homem de pouca fé. Em dois tempos, essa gente, uma espécie de oitava praga do Egito, acaba com o time e com o Santos.
– Oba! Então, logo nós seremos maiores do que eles?
– Menos, Vicente! Menos! Aí você já está querendo demais. Ponha-se no seu lugar. E reze três Ave Marias em homenagem a Mamãe.